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Tesouro
inestimável
Índios
bororos, em trabalho de Taunay / Foto: Reprodução
Acervo riquíssimo revela a
descoberta do Brasil segundo Langsdorff
CECÍLIA
PRADA
Ela
é reconhecida internacionalmente como uma das mais
importantes expedições científicas do
século 19. Mesmo assim, quase 180 anos após sua
realização (1822-1829), a aventura
científica do barão de Langsdorff permanece
grandemente desconhecida no próprio território
cujos recursos e riquezas naturais ajudou a revelar. Nada mais justo,
portanto, do que aproveitar o ensejo da
comemoração dos 500 anos do descobrimento do
Brasil para reavaliar a importância histórica
dessa verdadeira epopéia. Segundo seu maior especialista, o
professor Boris Komissarov, da Universidade de São
Petersburgo, que há 30 anos a estuda, o material coletado
pela expedição Langsdorff é hoje "o
último acervo clássico sobre o Brasil ainda
não incorporado à ciência e
à cultura".
Dizimada pela
malária e por acidentes vários em plena selva
– dos 39 homens que a integraram somente 12 sobreviveriam
–, prejudicada por numerosos desentendimentos entre alguns de
seus membros e marcada pelo trágico afogamento de seu melhor
pintor, o jovem Adrien Taunay, a expedição
organizada pelo barão Georg Heinrich von Langsdorff terminou
envolvida irremediavelmente em controvérsia e
mistério. O fato culminante foi a loucura
irreversível que atingiu o próprio Langsdorff, em
maio de 1828, após ter contraído
malária – e provocou o final da
expedição em 1829, um ano e meio antes do prazo
previsto para seu término. Do ambicioso
itinerário original traçado ela pudera cumprir
somente metade – assim mesmo um trajeto notável,
pois abrangia um percurso, fluvial e terrestre, de 17 mil
quilômetros, a partir do Rio de Janeiro, São
Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso e Amazônia.
Outras
expedições da época, menores e menos
ambiciosas – como as de Johann Baptist von Spix e Karl
Friedrich Philipp von Martius, Auguste de Saint-Hilaire, ou a de
Maximiliano Alexandre, príncipe de Wied Neuvied –,
que não contaram com tanta adversidade, tiveram logo
divulgação adequada entre o público
europeu e viram seus acervos científicos incorporados
imediatamente a importantes instituições. A
Langsdorff, desbaratada pelas trágicas
circunstâncias, não teve a mesma sorte e sofreu
ainda dois grandes reveses: seu volumoso arquivo, com mais de 800
documentos importantíssimos – inclusive os
minuciosos diários escritos pelo barão
–, fora enviado à Rússia,
país patrocinador da expedição, mas
durante nada menos do que um século foi dado como
completamente extraviado. Constava de centenas de caixas que continham
diários, anotações de viagem,
desenhos, aquarelas, mapas, espécies minerais, animais e
vegetais, vocabulários indígenas, material
etnográfico e correspondência diversa, que
permaneceram numa sala fechada, ainda em suas embalagens originais.
Somente foi descoberto por acaso em 1930, por ocasião de uma
reforma efetuada no antiquíssimo prédio da
Academia de Ciências de São Petersburgo (nessa
época, Leningrado). Mas algumas peças preciosas
desse arquivo nunca puderam ser recuperadas – como os
diários do astrônomo Rubtsov, membro da
expedição.
Além disso,
as extraordinárias coleções
mineralógicas, etnográficas, botânicas
e ictiológicas, avulsas, que Langsdorff foi remetendo com
regularidade germânica à Rússia de 1813
– ano em que chegou ao Brasil na qualidade de
cônsul-geral da Rússia – a 1827 ("muitos
caixas", costumava dizer em seu português peculiar), foram
dispersadas entre várias instituições
e sofreram alguns reveses e desgastes. Os piores foram os causados pela
inundação que atingiu Leningrado em 1924 e pelas
consequências do bloqueio da cidade na 2ª Guerra
Mundial.
Apesar disso,
tão grande é a importância desse acervo
que mesmo durante o século 19 a
expedição foi tida em grande conta – na
Europa – por cientistas, estudiosos e
instituições oficiais. Do final do
século 19 até hoje mais de 400 obras, em dez
idiomas, foram publicadas sobre ela, em todo o mundo. Em 1914 uma nova
expedição russa à América
do Sul foi organizada por membros do Instituto Biológico
Pietr Lesgaft, e com ela veio o cientista e linguista Guenrikh Manizer.
Na Biblioteca Nacional e nos museus do Rio de Janeiro ele estudou a
fundo os pormenores da grande viagem. De volta à
Rússia aprofundou suas pesquisas e conseguiu completar em
1917 a primeira biografia de Langsdorff. Mas contraiu tifo e morreu
seis meses depois, o que fez com que seu livro permanecesse
inédito na Rússia até 1948, e no
Brasil até 1967.
A
lenda negra de Langsdorff
No Brasil, enquanto
isso, uma "lenda negra" ia-se formando, injustamente, sobre a figura de
Langsdorff e sua expedição.
Responsável
por essa visão foi o primeiro historiador que, entre
nós, dela se ocupou – o visconde Alfredo
d’Escragnolle Taunay, que em 1875 publicou e comentou, na
"Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro", uma das variantes do diário de campo escrito
pelo pintor Hércules Florence entre 1825 e 1829. Como
sobrinho do pintor Adrien Taunay, o visconde não podia
deixar de expressar o ressentimento da família contra o que
julgava ser uma irresponsabilidade do chefe da
expedição, no referente à sua
trágica morte. Procurou incriminá-lo, buscando no
texto (objetivo e imparcial) de Florence argumentos para provar que
mesmo antes de ter sido atingido pela malária Langsdorff
apresentava sinais de desequilíbrio mental.
Essa visão,
aliada à ignorância do amplo material que nessa
época já se divulgava na Europa, contaminou os
poucos que se ocuparam no Brasil da expedição,
como Cândido de Mello Leitão e Rubens Borba de
Morais. Este último, ainda em 1968, referia-se a ela como
"malfadada" e dizia que "as coleções enviadas a
São Petersburgo foram reconhecidas como de pouco valor do
ponto de vista científico".
Até hoje,
é muito escasso o material disponível para
pesquisa, no Brasil. Nem uma só linha sobre o assunto
pôde ser achada pela Internet. E o verbete "Langsdorff" da Enciclopédia
Delta-Larousse dá a
expedição como "nunca realizada".
Na verdade, o conjunto
de documentos e coleções guardados até
hoje na Rússia e em outros lugares da Europa
contém dados preciosos sobre a história
socioeconômica, a etnografia, a estatística, a
geografia física e econômica, a
toponímia, muitos ramos da zoologia e botânica, a
meteorologia e a mineralogia do Brasil do século 19.
Representa uma verdadeira radiografia do período e mostra,
como diz Komissarov, que "o globalismo ecológico de
Langsdorff é o traço substancial de sua
visão de mundo".
A
busca do tesouro perdido
Entretanto,
após a redescoberta do arquivo na União
Soviética, também no Brasil, a partir de 1940,
algumas pessoas começaram a se interessar pelo assunto e
pela riqueza do acervo guardado no exterior. Com as
circunstâncias da guerra fria e o habitual fechamento de
informações por parte da União
Soviética, resultaram infrutíferas todas as
tentativas de obter notícias sobre o material lá
existente – sem resposta ficou, entre outras, uma carta do
historiador de arte Gilberto Ferrez, encaminhada por Jorge Amado
à Academia de Ciências da URSS.
Informado do assunto
pelo diretor do Patrimônio Histórico, Rodrigo Melo
Franco de Andrade, o diretor do Museu de Arte Sacra da Bahia, dom
Clemente da Silva Nigra, monge beneditino, começou a
pesquisar e escrever sobre a expedição. Em 1966
publicou pela Universidade de Yale (EUA) o livro O
Barão George Henrique de Langsdorff, 1774-1852 – O
Grande Cientista Esquecido do Brasil, obra
que no Brasil só contou com uma edição
mimeografada, apresentada num Colóquio Teuto-Brasileiro no
Recife, em 1968.
Dom Clemente visitou por
duas vezes os arquivos da Academia de Ciências de Leningrado,
em 1963 e 1965. Da última vez integrou uma missão
cultural do Brasil, chefiada pelo jornalista Assis Chateaubriand, a
quem conseguira interessar pela causa Langsdorff. Chateaubriand fez
publicar, na década de 60, extensas reportagens sobre o
assunto na revista "O Cruzeiro".
Muito embora dali por
diante o intercâmbio entre pesquisadores e cientistas
soviéticos e brasileiros houvesse se estabelecido, somente
após o advento da perestroika
e a abertura para o mundo dela resultante foi que os
esforços do governo de Brasília se viram
recompensados. Em 1985, por ocasião da visita do ministro
das Relações Exteriores, Olavo
Setúbal, à URSS, foi organizada uma
exposição com o material recolhido pela
expedição Langsdorff. Dois anos mais tarde um
acordo cultural entre os dois países permitiu que o material
dessa mostra fosse emprestado ao governo brasileiro, para
exposições em Brasília,
Cuiabá, São Paulo e Rio de Janeiro.
Quatro
simpósios internacionais foram realizados, sobre a
expedição Langsdorff: em 1974 em Leningrado; em
1988 na Universidade de São Paulo; em 1990 na Universidade
de Hamburgo; e em 1992 no Museu Imperial de Petrópolis. A
Associação Internacional de Estudos Langsdorff
(Aiel), fundada em Brasília em 1990, objetiva publicar o
acervo inédito de Langsdorff e vem tentando desenvolver o
chamado projeto Langsdorff de Volta – uma missão
científica que refaria o trajeto da
expedição original, comparando os dados colhidos
hoje com os existentes há quase dois séculos.
Algumas iniciativas têm tido sucesso, como o
lançamento dos livros Expedição
Langsdorff (Alumbramento) e Diários
de Langsdorff (Cia. Aluminis).
Cidadão
do mundo
O barão Georg
Heinrich von Langsdorff, nascido no principado de Mainz, Alemanha, em
1774, pertencia a uma família ilustre, com origem no
século 13. Seu pai era vice-chanceler do
grão-ducado de Baden. Formado em medicina pela Universidade
de Göttingen, o jovem Langsdorff estabeleceu-se de 1797 a 1802
em Lisboa. Exercendo a medicina e trabalhando com entomologia e
ictiologia, aprendeu ali o português com
perfeição e mudou seu nome para Jorge Henrique de
Langsdorff.
A partir de 1803, como
dominava também perfeitamente o idioma russo,
começou a participar, sob o nome de Grigory Ivanovitch
Langsdorff, de viagens e excursões científicas ao
redor do mundo, organizadas pelo governo imperial da Rússia.
Aos 29 anos já era sócio correspondente da
Academia de Ciências de São Petersburgo.
Participou, como naturalista, da primeira viagem de
circunavegação realizada pelos navios russos Nadezhda
e Neva. Em
dezembro de 1803 essa excursão ancorava no Brasil, na ilha
de Santa Catarina, onde Langsdorff teria seu primeiro contato com o
país que tanto interesse despertava nele e que amaria
apaixonadamente. Esse local foi escolhido para uma estada de seis
semanas por estar distante do olho desconfiado da
administração portuguesa. Até o
início do século 19 Portugal praticava uma
política de fechamento à
exploração, pois não interessava
colocar à disposição de outros
países informações sobre os recursos
naturais e mineralógicos – principalmente o ouro
– do Brasil. Cumpre lembrar que, no século 18, de
todo o ouro extraído no mundo, 85% provinha do Brasil.
Fascinado por se
encontrar diante de "algum mundo novo", Langsdorff realizou, nessas
poucas semanas, várias excursões pelo
território, coletou espécimens no campo da
ictiologia, da herpetologia e da entomologia, e conseguiu organizar um
herbário de mil espécies. Como era do seu feitio,
em cada região visitada estabelecia um contato real com os
habitantes, estudava seus problemas, anotava tudo o que despertava seu
interesse e quando preciso cuidava, como médico, da
população local. Sempre foi, segundo seu primeiro
biógrafo, Manizer, "homem de admirável
honestidade e interesse, que respondia atento às
necessidades da sociedade em que vivia e trabalhava". Em Nossa Senhora
do Desterro (hoje Florianópolis) ficou muitíssimo
impressionado e revoltado com o mercado de escravos que ali se
desenvolvia.
De 1804 a 1807
Langsdorff viajou pelo resto do mundo, conhecendo as ilhas Marquesas, o
Japão, o Alasca e a Califórnia. Foi
também pioneiro em percorrer de trenó as
regiões mais afastadas da Sibéria – na
península de Kamtchatka horrorizou-se com as
condições da população
local e fez chegar às mãos das autoridades russas
um relatório e um plano de reforma administrativa da
região. De 1804 a 1812 publicou uma série de
trabalhos científicos e o livro Notas
sobre uma Viagem ao redor
do Mundo, de 1803 a 1807, em
dois volumes, primeiro em alemão e depois em
inglês. Essa obra tornou-o famoso na Europa.
Estabelecido em
São Petersburgo em 1809 como membro da Academia de
Ciências, começou a organizar sua futura viagem ao
Brasil. Em 1813 desembarcava no Rio de Janeiro, na qualidade de
primeiro cônsul-geral da Rússia. Nos anos
seguintes conseguiu desempenhar simultaneamente, com grande
eficiência e empenho, as funções de
diplomata russo, cientista europeu e fazendeiro brasileiro. Adquiriu em
1816 a Fazenda da Mandioca, nas proximidades de Porto Estrela (hoje
município de Magé, RJ) e fez dela tanto um centro
de produção agrícola como um
núcleo cultural e científico, graças
à organização de um jardim
botânico, um museu de história natural e uma
biblioteca.
A Mandioca hospedou
grande número de cientistas e viajantes ilustres de
passagem. Sua fama tornou-se internacional – os cientistas
maravilhavam-se com as coleções nela existentes,
e o botânico Giuseppe Raddi, ao descobrir uma nova
espécie de planta, denominou-a mandiocana.
Uma revista noticiou, em Moscou, a formação de
"um núcleo de população original
chamado Mandioca,
fundado no Brasil pelo cônsul-geral da Rússia". A
fazenda chegou a ser visitada pelos próprios imperadores do
Brasil, dom Pedro e dona Leopoldina.
Foram numerosas as
viagens isoladas que Langsdorff empreendeu de 1813 a 1822 pelo interior
do Brasil, aproveitando sempre para coletar materiais e reunir
informações de várias
espécies sobre a natureza e a
população do país. Desde
março de 1814 começou a enviar regularmente para
São Petersburgo coleções
entomológicas e ornitológicas. Manteve durante
esse tempo intercâmbio científico com todos os
viajantes que passavam pelo país. Muitas vezes subvencionou
pesquisas com recursos próprios. Durante umas
férias, em 1816, realizou com o botânico
francês Auguste de Saint-Hilaire uma viagem a Minas Gerais,
para estudar a exploração de minérios.
Saint-Hilaire surpreendia-se com a energia física e moral
daquele alemão alto e magro, que já contava 42
anos, mas cujo ritmo vigoroso o botânico, embora mais
moço, mal conseguia acompanhar.
Era de temperamento
forte, e extremamente exigente, como chefe. Trabalhava sem descanso,
indiferente a todas as dificuldades, e esperava isso das demais
pessoas.
Um
grande sonho
De todas as
expedições científicas ao Novo Mundo
nenhuma foi tão cuidadosamente preparada como a empreendida
por Langsdorff. Em junho de 1821, quando estava em férias em
São Petersburgo, ele apresentou a Karl Nesselrode,
vice-chanceler do império, o plano de uma grande
expedição científica pelo interior do
Brasil, que teria como objetivos "descobertas científicas,
pesquisas geográficas, estatísticas e outras,
estudo dos produtos pouco conhecidos no comércio, material
sobre todos os reinos da natureza que eu possa coletar e que possam
concorrer para o enriquecimento das atuais
coleções do império". Dois dias depois
era recebido pelo czar Alexandre I, que garantiu seu
patrocínio pessoal à iniciativa, com plena
liberdade de roteiro e prazo não definido.
Langsdorff demorou-se na
Europa, escolhendo especialistas em vários ramos da
ciência e comprando equipamentos. Voltou ao Brasil em navio
fretado, trazendo sua família, o zoólogo
Ménétriès e o artista Johann Moritz
Rugendas, e também cerca de duas dezenas de
famílias de colonos alemães, destinadas
à Fazenda da Mandioca. Mais tarde, já no Brasil,
outros especialistas se juntariam à
expedição – como o astrônomo
Rubtsov, o botânico Ludwig Riedel e o jovem naturalista
Christian Hasse, além dos artistas Taunay e Florence.
A 5 de março
de 1822 aportavam no Rio de Janeiro, mas as circunstâncias de
instabilidade política do país, o
acúmulo de funções desempenhadas no
setor diplomático, a escassez verificada das verbas foram
fatores que retardaram durante dois anos a
expedição. Teve grande interesse por ela, e
apoiou-a no possível, José Bonifácio
de Andrada e Silva, que, além de político, era
cientista.
A primeira etapa da
expedição – viagem a Minas Gerais
– realizou-se em 1824, levou cerca de um ano e percorreu mil
quilômetros, recolhendo precioso material de interesse
científico e fazendo um levantamento
cartográfico, econômico e etnográfico
das regiões atravessadas. Além disso, tanto
Langsdorff como Riedel retardaram muitas vezes o percurso da
expedição porque frequentemente eram solicitados,
e até mesmo "assediados" a prestar serviços
médicos às populações
doentes.
Em agosto de 1825 a
expedição partiu do Rio de Janeiro para Santos.
Percorreu várias partes da província de
São Paulo durante o restante daquele ano e somente partiu de
Porto Feliz (pelo rio Tietê) para Mato Grosso em 22 de junho
de 1826.
No dia 26 de
março de 1829, após os grandes reveses que
provocaram seu término, os sobreviventes da
expedição Langsdorff entravam na barra do Rio de
Janeiro a bordo do navio Dom
Pedro I, trazendo consigo seu
chefe, irremediavelmente atingido em suas faculdades mentais. Embarcado
com a família para a Europa em 1830, o barão de
Langsdorff morreria em Freiburg, Alemanha, 22 anos mais tarde
– em 1852, sem ter recuperado suas faculdades mentais.
E, no entanto, amava
tanto o Brasil que planejava viver aqui até o fim de seus
dias. Dizia em 1827, em uma carta: "No Rio de Janeiro eu gostaria de
encontrar, nos anos que me restam, uma ocupação
permanente para deixar esta vida de cigano e viver e morrer em paz".
Além de um
filho natural, Karl Georg, nascido em 1809 na Alemanha, o
barão teve duas filhas, nascidas no Brasil, de um seu
primeiro casamento com Friderike Schubert, e seis filhos de seu
casamento com Wilhelmine, quatro dos quais nascidos no Brasil.
São numerosos seus descendentes atuais, em quinta
geração, na Alemanha, na França e no
Brasil – seu filho Heinrich Ernst (nascido em 1823) fixou
residência aqui, depois da volta da família para a
Alemanha. As atrizes Luma e Isis de Oliveira descendem desse ramo da
família Langsdorff.
A
selva trágica
Redigidos
em alemão gótico, os manuscritos dos
diários de Langsdorff somente foram encontrados na
década de 1930, em Leningrado, e permaneceram
inéditos até 1998. Contêm
descrições pormenorizadas das riquezas naturais,
das belíssimas paisagens, da vida dos povos
indígenas, mas registram também a grande
miséria do país, as doenças, os
perigos da selva. Um pressentimento de tragédia parece
envolvê-lo, desde seu início, como se pode ver nos
trechos abaixo.
"Começamos
hoje um caminho novo, ainda não trilhado por
ninguém. Temos diante dos olhos um véu escuro.
Deixamos o mundo civilizado para viver entre índios,
onças, tapires e macacos" (22/6/1826, dia da partida de
Porto Feliz para Cuiabá).
"Vivíamos
em uma nuvem de mosquitos e éramos mártires da
paixão pelas viagens... Somente quem for capaz de imaginar o
que significa alguém conseguir escrever, desenhar, preparar
peles e empalhar, coberto por uma nuvem escura de insetos que picam e
esvoaçam em torno, é que poderá
avaliar o preço deste material aqui coletado."
"As
águas do Paraguai, que corriam vagarosamente, estavam
cobertas de folhas podres, raízes, peixes mortos,
jacarés, barro vermelho e uma espuma amarela. Tinham uma
aparência abominável e eram impróprias
para beber" (3/12/1826, no Pantanal).
"Dentro
de alguns dias, se possível, chegarei ao pouco conhecido
território diamantífero. Determinarei as
nascentes do rio Paraguai. Terei de atravessar uma região
elevada e descer os rios Preto, Arinos e Tapajós, para
chegar à Fortaleza de Santarém, no Amazonas...
Nenhum perigo ou dificuldade conseguirão intimidar a mim e a
meus homens" (25/4/1827, em carta a Nesselrode).
"Hoje,
desde a manhã, estive ocupado com diversos assuntos. Alguns
peixes novos... Coloquei algumas plantas para secar. Tive uma
lição de língua apiacá e
senti-me bem até lá pelas duas horas da tarde,
quando fui acometido por novo acesso de febre fria que se prolongou
até a noite... As causas desta febre são
permanentes: emanação e
infiltração de substâncias putrefatas
que provêm de qualquer ponto das margens dos rios. Como
poderão os remédios produzir efeitos?" (9/4/1828).
"Dois
dias infelizes. Não pensei que passasse do dia de ontem...
Hoje, porém, consigo novamente controlar meu corpo, mas
não meu espírito" (20/4/1828).
"Com
a ajuda e assistência de Deus, estou vivo e posso escrever...
Desde 24 de abril passo a maior parte do dia e da noite inconsciente e
entregue aos mais fantásticos sonhos" (13/5/1828).
"Nossas
provisões minguam a olhos vistos. Precisamos apressar nossa
marcha. Temos ainda de atravessar muitos lugares perigosos do rio. Se
Deus quiser, hoje continuaremos nossa viagem. As provisões
diminuem mas ainda temos pólvora e chumbo" (20/5/1828).
Essas
foram as últimas palavras escritas por Langsdorff. Um novo
acesso de febre apagaria para sempre seu grande espírito.
Artistas e aventureiros
A dura vida dos
profissionais convidados para a epopéia
Pintores,
naturalistas, geógrafos, astrônomos e
vários outros cientistas foram convidados por Langsdorff
para sua expedição. Alguns vieram da Europa
especialmente e outros foram contratados no Brasil. Cada um legou obras
de valor incalculável e uma história de vida
marcada por coragem, resignação e
tragédia, como o desenhista Adrien Taunay, que se afogou ao
tentar atravessar o rio Guaporé.
A
revolta de Rugendas
Quando foi contratado
por Langsdorff, em 1821, o artista alemão Johann Moritz
Rugendas tinha apenas 19 anos. Pertencia a uma família
tradicional de pintores, de nobre linhagem. Ainda não
terminara seus estudos, mas, influenciado pelo relato de viagens dos
naturalistas Spix e Martius e dos pintores austríacos Thomas
Ender e Buchberger, mostrava-se extremamente ansioso para conhecer o
Novo Mundo. Mas o longo tempo de espera que teve de suportar na Fazenda
da Mandioca antes do início da
expedição foi demasiado para seu temperamento.
Poucos meses
após a chegada ao Brasil, tentou romper seu contrato. Sem
pedir permissão ou dar qualquer
explicação, viajou da fazenda para a cidade do
Rio de Janeiro, onde procurou trabalho. Não conseguindo
nada, teve de voltar para o serviço com Langsdorff, mas dali
por diante a tensão entre os dois só aumentaria,
contagiando outros membros da expedição. Diz
Langsdorff: "...Apoquentou-me de todas as maneiras. Procurava criar
motivos para se ver livre da expedição... Ele
desenhava com aplicação, tendo feito muitos
esboços e composições. Mas se eu me
aproximava dele enquanto estava trabalhando, fechava o álbum
com força e abria numa outra folha limpa, para que eu
não visse o que estava desenhando". Abusando da liberdade de
que gozava na casa da fazenda, Rugendas – segundo Langsdorff
– teria chegado até mesmo a violar sua
correspondência, procurando nela fundamentos para os boatos
que lançou sobre uma suposta improbidade do cônsul
na manipulação dos fundos da
expedição.
Essa
situação manteve-se até o final do ano
de 1824. Achando-se então a expedição,
já em pleno curso, acampada numa fazenda de Minas Gerais,
uma discussão entre os dois tornou-se tão grave,
acarretando insultos grosseiros, que o cônsul imediatamente
tomou a resolução de demitir o desenhista
– ordenando que, conforme o contrato que assinara, Rugendas
entregasse à expedição todos os
desenhos feitos até então. Mas o pintor se
recusou a cumprir seu contrato. Em relatório feito ao
vice-chanceler russo, Karl Nesselrode, Langsdorff diria, em carta de 18
de dezembro de 1824: "Ele entregou-me algumas cópias e
esboços feitos a lápis, sem grande
importância e praticamente inacabados. Conservou consigo os
trabalhos bons e originais".
Em maio de 1825, fugindo
ao controle do consulado russo, Rugendas embarcava de volta para a
Europa, levando 500 de seus melhores desenhos, e no mesmo ano promovia
sua primeira mostra em Paris. Todas as tentativas feitas pelo governo
russo para reaver o material foram inúteis. Em 1827, com o
apoio do cientista Alexander von Humboldt, foi iniciada a
publicação das gravuras que se tornariam
célebres, baseadas nos desenhos. A
edição completa de Voyage
Pitoresque dans le Brésil,
com cem gravuras originais, foi completada em 1835 e divulgou o Brasil
na Europa.
Entre 1825 e 1831
Rugendas viveu na França, na Alemanha e na
Itália. Vinte anos mais tarde voltou ao Brasil, onde se
demorou mais quatro anos, percorrendo-o e registrando suas paisagens e
costumes. Fez também extensas viagens ao Haiti,
México, Chile, Peru, Bolívia, Argentina e Uruguai
– uma grandiosa epopéia, refletida em cerca de 3,5
mil obras. Recebeu por esse motivo o título de "pintor das
Américas", do grande geógrafo Domingos Sarmiento.
Apesar desse
reconhecimento, o pintor sempre passou por dificuldades materiais. Sua
situação só melhorou após o
monarca da Baviera, Ludwig I, ter comprado a maior parte de seus
trabalhos. Rugendas faleceu em Wurttemberg, Alemanha, em 1858.
A
tragédia de Taunay
Alguns meses
após a partida de Rugendas, Langsdorff contratava como
desenhista da expedição o jovem pintor
francês Adrien Aimé Taunay, filho do pintor
Nicolas-Antoine Taunay, que viera se estabelecer com a
família no Brasil em 1816, integrando a Missão
Artística Francesa.
Adrien Taunay
já tivera tempo, aos 23 anos, de demonstrar tanto seu
talento como seu espírito aventureiro e destemido. De 1818 a
1820 participara como desenhista da expedição de
Louis de Frecynet ao Pacífico –
Austrália, Timor, ilhas Carolinas, Marianas,
Havaí e arquipélago de Samoa. Perto das ilhas
Falkland o navio dessa expedição, L’Uranie,
naufragou, e o jovem escapou por pouco da morte.
O relacionamento entre
Taunay e Langsdorff não foi muito fácil
também, pelos mesmos motivos que haviam causado o rompimento
entre Rugendas e o cônsul. Da parte deste, autoritarismo e
talvez exigências demasiadas; da parte do jovem, a mesma
impaciência com os percalços que faziam retardar a
marcha da expedição, com os longos
períodos despendidos em lugares como Cuiabá e na
povoação dos índios
apiacás. O temperamento de Adrien, com tendência
à depressão, era classificado pelo
cônsul como "indolente" – o oposto do seu, muito
agitado.
Em 1827, quando a
expedição já se encontrava em Mato
Grosso, Langsdorff resolveu dividi-la em dois grupos. Um deles, que
chefiava, se embrenharia na selva por caminhos pouco conhecidos,
decidido a descobrir as nascentes do rio Paraguai, enquanto o outro
– composto do botânico Riedel e de Taunay
– atingiria o Amazonas descendo os rios Guaporé,
Madeira e Mamoré. O ponto de encontro dos dois grupos seria
o Forte de São José, na barra do rio Negro (hoje
Manaus). Dali, todos deveriam entrar por território espanhol
até chegar ao rio Orenoco.
No dia 21 de novembro de
1827 o botânico e o pintor deixaram Cuiabá, com
destino à região do Diamantino. Em carta dirigida
a Riedel, Langsdorff dava-lhe instruções
pormenorizadas sobre o roteiro e o procedimento que devia adotar. E
escrevia, em relação a Taunay, que este estaria
subordinado à autoridade de Riedel, acrescentando: "Tente
conseguir que ele seja de boa vontade aplicado, e desse modo possa
organizar a vida dele. Talvez consiga isso melhor do que eu, porquanto
mais adiante ele terá menos distração
do que aqui. Se ele não o ajudar em nada, eu o autorizo a
despedi-lo".
É
interessante notar que a "distração" que
censurava no jovem Adrien incluía um trabalho
notável realizado por este, durante a estada em
Cuiabá – como tinha também interesse
por música, Adrien conseguira pesquisar e transcrever 84
preciosas peças musicais de ninguém menos do que
o famoso mestre padre José Maurício, cujas
partituras haviam ido parar em tão remotas plagas. E
enquanto censurava essas "outras atividades" a que se entregavam seus
subordinados, ele próprio, Langsdorff, era por sua vez
criticado acerbamente por aqueles, pelo tempo que perdia.
Nessa carta Langsdorff
aconselhava também Riedel a manter-se afastado da Vila Bela
de Mato Grosso (hoje Vila Bela da Santíssima Trindade), pela
incidência de febres. Aconselhava-o a um longo
período de espera em Vila Borba, antes de se encaminhar
à barra do rio Negro. Mas, não se sabe por
quê, Riedel ignorou o conselho de Langsdorff. E assim, no dia
18 de dezembro de 1827, ele e Taunay chegaram a Vila Bela. No dia 30 de
dezembro resolveram fazer uma pequena viagem até Casalvasco,
na fronteira da Bolívia, aonde chegaram em 3 de janeiro de
1828. Na volta a Vila Bela, o impetuoso Adrien disparou à
frente de Riedel, em meio a uma violenta tempestade que se aproximava.
Ao chegar ao rio Guaporé, de águas caudalosas e
agitadas, em meio a forte chuva e raios resolveu
atravessá-lo a nado, impaciente com o barqueiro que
não vinha. Adrien nadava muito bem e confiou demasiado em
suas forças. Sob o olhar consternado dos que estavam no
local, que não conseguiram fazer nada para
socorrê-lo, desapareceu para sempre nas águas
– tinha 25 anos.
Escreveu Langsdorff em
seu diário: "Essa notícia foi para mim muito
dolorosa, mesmo tendo muitas e fundamentadas razões para
estar descontente com o comportamento do falecido. Taunay
possuía um dom natural variado. Foi um artista
verdadeiramente genial, em todo o sentido da palavra.
Imaginação aguçada,
inclinação para a música, a
mecânica, a pintura, além de ter sido
infinitamente imprudente e arrojado... Se estava inspirado, em uma hora
produzia mais que qualquer outra pessoa em meio dia".
A
objetividade de Florence
Nascido em Nice em 1804
de uma família de médicos militares, Antoine
Hercule Romuald Florence veio para o Brasil aos 20 anos, onde
abrasileirou seu prenome principal para "Hércules". Em vista
do acontecido com Rugendas, Langsdorff, após ter contratado
Taunay, resolveu acrescentar à
expedição um segundo desenhista, e colocou um
anúncio no jornal para esse fim. Florence apresentou-se e
foi logo contratado. Somava às suas aptidões
artísticas um espírito prático e
inventivo que lhe permitiu desempenhar tarefas de grande apoio para a
expedição, nos quatro anos que com ela viajou.
Após a morte trágica de Taunay assumiu o papel de
desenhista oficial – executou um grande número de
desenhos e quadros sobre motivos da flora e da fauna, índios
e outras populações da região
percorrida, e ainda paisagens. Catalogou também a extensa
obra deixada por Taunay e Rugendas.
Além disso,
deve-se a Florence o registro minucioso, através de seu
diário de campo (1825-1829), de todos os trabalhos e
peripécias da expedição. Deixou cerca
de 2 mil páginas escritas, uma parte das quais ainda
inédita, em manuscrito conservado pela sua trineta Teresa
Cristina Florence, moradora em Campinas (SP). Esses textos incluem
também o livro L’Ami
des Arts livré à lui-même,
amplamente ilustrado, em que relaciona as suas numerosas
invenções e registra episódios da vida
cotidiana na sua fazenda. Outros trabalhos seus, principalmente
desenhos e quadros, encontram-se na coleção de
sua bisneta Leila Florence Moraes, no Rio Grande do Sul.
Após o
término da expedição, Florence
resolveu estabelecer-se definitivamente na então Vila de
São Carlos, hoje Campinas (SP), casou-se duas vezes e teve
16 filhos. Tornou-se agricultor e fazendeiro e dedicou-se,
além da pintura e da poesia, a suas
invenções, tendo passado à
história como um pioneiro da descoberta da fotografia e da
poligrafia (método semelhante à mimeografia
atual). A invenção desse sistema de
impressão possibilitou o aparecimento do primeiro jornal na
região, "A Aurora Campineira". Foi pioneiro
também ao escrever um tratado de zoofonia (as vozes dos
animais).
Faleceu em Campinas em
1879, aos 75 anos, considerado um cidadão insigne.
O
inventor da fotografia
Com
o espírito meticuloso que tinha, Hércules
Florence registrava em seu diário, numa
relação maior de descobertas e pesquisas: "Neste
ano de 1832, no dia 15 de agosto, estando a passear na minha varanda,
vem-me a idéia que talvez se possam fixar as imagens na
câmara escura, por meio de um corpo que mude de cor pela
ação da luz. Esta idéia é
minha porque o menor indício nunca tocou antes o meu
espírito. Vou ter com o senhor Joaquim Corrêa de
Mello, boticário de meu sogro, homem instruído,
que me diz existir o nitrato de prata".
Construindo
uma câmara escura com uma caixa de papelão, uma
paleta de pintor e uma lente, Florence colocou dentro dela um papel
embebido em nitrato de prata e durante quatro horas deixou-o exposto
à ação da luz que provinha de uma
janela através da qual viam-se os tijolos e o teto da casa
em frente e parte do céu. Acabou por obter, meio sem
entender, a primeira imagem negativa-positiva da história da
fotografia. Registrava em seu diário que o
boticário, senhor Mello, ajudara-o a batizar o invento,
formando a palavra photographia
(do grego photos
= luz, e graphia
= desenho, escrita).
Compreende-se,
portanto, sua amargura e frustração quando em
1839 – cerca de sete anos mais tarde –
estando na farmácia do doutor Engler, em Itu,
ouviu que o "Jornal do Comércio" do Rio de Janeiro anunciava
que um pintor francês, Daguerre, descobrira em Paris um
processo de fixar imagens por meio da incidência da luz sobre
uma placa de metal. Já em 1834 Hércules Florence
desabafara em seu diário, amargurado: "Eu inventei a
fotografia; fixei as imagens na câmara escura; inventei a
poligrafia... Minhas descobertas estão comigo, sepultadas no
olvido; meu talento, minhas vigílias, meus
sacrifícios, são estéreis para os
outros... Se eu estivesse em Paris, lá encontraria, talvez,
pessoas que me escutassem, mas aqui não vejo
ninguém a quem possa comunicar minhas idéias. Os
que me poderiam ouvir só pensam nas suas
especulações e na política".
Em
1839, acrescentaria: "A fotografia é a maravilha do
século. Eu também já tinha colocado as
bases, tinha previsto essa arte em sua plenitude; eu a realizei antes
do processo de Daguerre, mas trabalhei no exílio. Eu imprimi
pelo sol sete anos antes que se falasse em fotografia, e eu tinha dado
esse nome. Entretanto, a Daguerre as honrarias".
Hoje,
graças principalmente às pesquisas e à
divulgação feita pelo brasileiro Boris Kossoy, o
nome de Hércules Florence já tem reconhecimento,
inclusive na França, desde 1988, como um dos inventores da
fotografia. Diz Kossoy em seu livro "Hércules Florence,
1833: A Descoberta Isolada da Fotografia no Brasil" (Duas Cidades,
1980) que na realidade existem várias maneiras para se
alcançar o processo fotográfico, mas que as
experiências de Florence foram bem diferentes das realizadas
pelos demais inventores, na época. Kossoy fez com que a
técnica utilizada por ele fosse reproduzida em 1976 nos
Estados Unidos, nos laboratórios do Instituto de Tecnologia
de Rochester – o resultado foi a
comprovação científica da validade e
da precedência da descoberta feita por Florence.
Hoje,
como ontem
Num
charmoso estúdio da Vila Madalena, em São Paulo,
aberto ao público e com ar de festa, a jovem artista Adriana
Florence vem dando continuidade ao trabalho de "redescoberta" do Brasil
que seu tataravô, o pintor, inventor e escritor
Hércules Florence, realizou há quase 180 anos,
integrando a notável expedição
Langsdorff.
Fixados
nas paredes, em chassis ou ainda em cascatas de telas espalhadas pelo
chão, seus trabalhos atraem de imediato a
atenção para os temas essencialmente brasileiros,
tratados com cores vivas e originalidade – índios,
paisagens, bichos e plantas. Riquíssima temática
que empolga a artista desde menina – aliada ao
espírito de aventura também herdado, pois seu
desejo já era, aos 13 anos, poder embrenhar-se mato adentro.
Tentou engajar-se no Projeto Rondon, não a aceitaram devido
à pouca idade. Mas da época que passou, por conta
do pai militar, no território de Missões, Adriana
guarda até hoje lembranças intensas e uma grande
familiaridade com programas que envolvam a vida selvagem.
Há
12 anos ela vem pesquisando por sua conta a vida de algumas tribos de
índios, como os xavantes e os bororos, e trabalhando num
projeto denominado "Todas as tribos", que integra os elementos
etnográficos colhidos em várias comunidades
indígenas e ribeirinhas.
Neste
ano, Adriana teve a oportunidade de participar de um trabalho da maior
importância, o documentário "No Caminho da
Expedição Langsdorff" (75 minutos), uma
co-produção da Grifa Cinematográfica e
dos canais Discovery e France3 – que o Discovery
lançou no dia 17 de setembro para cerca de 200
países.
"Foi
uma experiência extraordinária, única",
diz Adriana. "Pude visitar lugares que tinham sido pintados ou
desenhados por meu tataravô Hércules e verificar
que ainda conservavam toda a beleza natural. E documentei isso com meus
desenhos e aquarelas. Ainda encontrei também sobreviventes
de algumas tribos visitadas por ele."
Em
30 dias a equipe do documentário refez o trajeto fluvial em
que a expedição Langsdorff gastara dois anos
– 6 mil quilômetros, entre Porto Feliz (SP) e
Santarém (PA), percorrendo rios e trechos da floresta. O
interessante é que, após 178 anos, a precariedade
das condições do território continua a
mesma, como pôde ser testemunhado pelo diretor do
documentário, o cineasta Maurício Dias, e por seu
amigo, o produtor Luís de Oliveira. Adiantando-se ao resto
da equipe eles resolveram enfrentar o traiçoeiro rio
Juruena, cheio de corredeiras e no qual são realmente muito
poucos os que se aventuram, até hoje.
O
resultado é que, depois que seu barco de alumínio
foi espatifado por uma pedra numa corredeira, os dois amigos ficaram
perdidos na selva durante oito dias à espera de resgate,
comendo restos de peixe com farinha, atacados por bandos de mosquitos e
mal disfarçando um do outro um grande temor de
onças. Interessante é comparar o que
Maurício e Luís contam sobre suas aventuras nesse
tumultuado trecho do rio – em matéria publicada na
"Revista da Folha" de 17 de setembro de 2000 – com as
descrições feitas pelos viajantes de 1828. Canoas
furadas e despedaçadas pelas pedras nas corredeiras, "o
impulso da correnteza e dos redemoinhos que davam às
águas do Juruena a aparência de estarem fervendo"
(dizia Florence em 1828), nuvens de insetos que caem até na
panela em que são cozinhados feijões cada vez
mais escassos, "insetos invadiam a panela durante o dia e infestavam
tudo" (diz Maurício, no ano 2000).
E
pairando sinistra sobre a selva, hoje como há 178 anos, a
presença da malária devoradora de homens... De
volta a São Paulo, depois da vitoriosa
expedição cinematográfica,
Luís de Oliveira apresentou uma febre persistente, que os
médicos consultados suspeitaram ser malária...
felizmente não confirmada.
A
malária, presente ainda em grande parte do
território brasileiro, é uma das piores e mais
mortais doenças do mundo, mesmo às portas do
século 21.
© Problemas
Brasileiros
Fonte e
Referência:
PRADA, Cecília.
Tesouro inestimável. Problemas
brasileiros, ano 38, n.342,
nov./dez. 2000. Disponível em: <http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas/revistas_link_home.cfm?Edicao_ID=92&breadcrumb=1>.
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